Comemoramos um acontecimento, no dia 12 de novembro de 2017, vergonhoso e trágico, que se deu em Senador Pompeu, no Ceará, em 1932. Comemorar é relembrar. Se a história não for conhecida, a memória não pode ser purificada. Esquecida, pode-se cometer os mesmos erros e até piores. Não há aprendizado.
A pedagogia da memória viva é tornar a história, por pior que seja, atualizada, isto é, capaz de ser contada e aberta ao futuro novo. A romaria, expressão da religiosidade popular, revive a história como manifestação de fé, cheia de profecia esperançosa e realista, pois anuncia, denuncia, adverte e alimenta a vontade de construir novo tempo e novo espaço, no universo social e político da seca.
No início do século 20, a população cearense sofreu um longo período sem chuvas. A seca de 1915 é a mais conhecida, nacionalmente, em grande parte devido ao romance de Rachel de Queiroz. Em 1919, foi iniciada a construção da barragem do Patu, em Senador Pompeu, para amenizar a falta d’água. A empresa inglesa contratada ergueu a infraestrutura para abrigar engenheiros, operários, técnicos e maquinários. Entretanto, por ordem do Governo Federal, tudo foi paralisado, em 1924, e o canteiro de obras foi abandonado. O empreendimento e os gastos públicos serviram para alimentar a chamada “indústria da seca”. Parte do dinheiro não foi para o ralo, mas para os bolsos de oligarcas. A seca serviu mais uma vez como pretexto. A História da Brasil não registra este fato como relevante.
Com a intenção “humanitária” de deslocar para Fortaleza as levas de sertanejos que fugiam do flagelo da seca de 1932, o Governo adotou a mesma solução maléfica dos confinamentos em locais estratégicos, já utilizados em 1915, na periferia da Capital. Um dos campos de concentração funcionou em Senador Pompeu, justamente no canteiro de obras da barragem abandonada do Patu que poderia -ó ironia! – ter sido erguida para amenizar o problema da nova seca na região. A História do Brasil também não registra este fato como relevante.
Pessoas foram iludidas de irem para a capital com a promessa de emprego, de comida e de remédios. Entretanto, jamais sairiam vivas de Patu. Quem entrou no campo de concentração era impedido de sair. Perdida a liberdade, morreria de fome, de sede, de doença, de desespero. No campo de morte, eram enterrados em valas comuns como indigentes. Mais de 20 pessoas morriam diariamente. Conforme os jornais da época, o campo concentrava mais de 16 mil pessoas. Uma calamidade. É claro que o Estado Brasileiro tem sua responsabilidade não reconhecida nem reparada. A História do Brasil também não divulga este fato como relevante.
Em 1982, o padre italiano Albino Donati convocou os paroquianos da Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores para saírem a pé, de madrugada, até o Cemitério da Barragem, para recordarem as vítimas, rezarem e refletirem. A Caminhada romeira virou tradição, em todo segundo domingo de novembro. Deus permita que nunca se acabe! Sempre é concluída com a celebração eucarística, memorial do sacrifício vicário do Servo Sofredor e Redentor. Faz-se a memória em Cristo de todos estes, irmãs e irmãos nossos, vitimados pela desumanidade governamental. Precisou que um estrangeiro, amigo de nossa gente nos lembrasse que a HISTÓRIA DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO É RELEVANTE.
Por estas e outras, tem razão o historiador cearense Neuzemar Gomes de Moraes ao constatar: “A história do Brasil se escreve com sangue”. Nossa índole cordial e pacífica é apenas um mito.
Como Bispo de Iguatu, participei da 34 Caminhada da Seca e participarei da 35. É animada pelas Pastorais Sociais, as CEBs, a Urgência Defesa da Vida. Relevam o simbolismo pluridimensional: devocional e litúrgico, sócio-político e religioso, histórico e cultural. Com efeito, o lugar é chamado de Campo Santo e Santuário da Seca. A devoção é às Santas Almas da Barragem. A Caminhada é conduzida no ritmo de cânticos, intercalados com reflexões sobre a indústria da seca, os direitos fundamentais ao acesso à terra e à água, a defesa e a promoção da vida com a ecologia humana. Enfim, o memorial eucarístico é a melhor expressão da esperança animada pela fé.