15 de Setembro de 2017. Seis da tarde. A cidade fantasma chamada Agreste, localizada no sertão de Quixelô, Ceará, ganha vida para a comemoração do dia dedicado à Nossa Senhora das Dores.
Centenas de pessoas vem de todos os lugares para rezar, agradecer e prestar homenagens à santa madrinha de muitos que viveram por ali.
Um gerador portátil fornece a energia para iluminar a igreja e alimentar o som de uma caixa que ajuda o padre Joãozinho a celebrar a missa para os fiéis.
Há algumas décadas Agreste tinha tudo para se tornar uma cidade, mas foi misteriosamente abandonada. Ficou para traz a fé e a santa que ainda une todos que por ali um dia passaram.
Os fogos anunciam o fim das festividades e a próxima missa apenas no dia de Finados em 2 de novembro. Depois disso a cidade volta a não ter nenhum habitante.
Esta história de fé começa bem antes do que podemos imaginar.
Agreste, Quixelô (CE) – A incrível história de uma comunidade nascida da fé
Sertão Central do Ceará, em algum dia de setembro de 1928, antes da data dedicada a Nossa Senhora das Dores, oito léguas depois de Iguatu, o silêncio da caatinga é interrompido pela ladainha de uma leva de tropeiros que estão a entoar cânticos repetidos em favor da fé. De terço na mão seguem rumo a Agreste. Essa é uma viagem histórica que mudaria para sempre os rumos da comunidade.
Anos depois da Seca do Quinze, uma estiagem devastadora que matou milhões de pessoas pelo Nordeste, um homem leva na bagagem uma carga importante.
Ainda faltam quatro léguas para chegar a Agreste onde, finalmente, a imagem de Nossa Senhora das Dores irá tomar posse da igreja construída em sua homenagem.
Já são três cansativos dias de viagem de volta de Iguatu, mas o sacrifício de alguns anos de luta para erguer o templo em homenagem a santa terá a sua missão completada. Além da imagem da santa, carregada por apenas um jumento com uma perfeita cruz desenhada de nascença às costas, estão outros carregando víveres e utensílios que a terra de Agreste não produz.
O mentor de toda essa ação de fé é Pedro Castro Lima que aos 40 anos está prestes a cumprir sua profissão de fé. Nascido em 1888, ano da Libertação dos Escravos, sua luta pela liberdade da alma continua.
Um dia depois chegam a Agreste e a santa ganha seu lugar no centro do altar envolta em grande festa e orações. Ao lado esquerdo dela está a Santo Antônio e à sua direita a Sagrada Família.
Um sino de bronze, bastante pesado, também foi colocado para poder chamar os fiéis para a missa. Agreste tinha água boa, uma igreja, muita fé e gente trabalhadeira. Estava pronta para crescer. Estava.
Voltemos à 2016: A Agreste de hoje
Ruínas da casa paroquial. Detalhe para a cadeira do padre pendurada no armador de madeira há mais de década
Agreste era um lugar vivo, com muitas casas boas e muitas novenas, muita fartura em festas e leilões animados. Batizados eram constantes, crismas também. A fé ali tinha sua morada e missão, mas um dia, não se sabe por quê as pessoas foram morrendo e depois de 1956, ano da morte de Pedro Castro Lima, a coisas começaram a mudar definitivamente.
As cidades cresceram no sentido contrário a Agreste e aos poucos a comunidade foi definhando, perdendo moradores e suas casas sendo abandonadas. Reza uma lenda que depois de uma morte em uma quermesse as coisas pioraram ainda mais.
Décadas depois o distrito de Bom Jesus de Quixelô, emancipa-se e passa a chamar-se Quixelô e Agreste passa a fazer parte dele. A sede, anteriormente Iguatu, que estava a três dias de caminhada, agora era Quixelô e estava bem mais perto. Assim as pessoas foram migrando para mais próximo da nova cidade, outras morrendo e as casas foram, aos poucos, sendo abandonadas.
Agreste começava a transformar-se em uma cidade-fantasma.
Dona Vanda
Atualmente Agreste tem uma comunidade que está a três quilômetros de onde está a igreja de Nossa Senhora das Dores, local onde se ergueu o antigo povoado.
Ao chegarmos onde residem as pessoas da nova Agreste, a porteira é aberta pelo pequeno e esperto Luiz e foi lá que encontramos dona Vanda. Aos 80 anos ela é a memória viva do lugar e entre um café e algumas fotos nos conta mais detalhes sobre a história de uma comunidade que de viva restou apenas a igreja e a fé das pessoas que lá ficaram.
Dona Vanda nos mostra seu baú de pertences, a caixinha de guardar dinheiro que herdou de sua mãe e fala como criou os filhos no caldo do mugunzá. Diz ela que antes, as mulheres tinham que providenciar a comida e cuidar das coisas de casa, dos filhos, do marido e hoje, quando os maridos já trazem a comida da rua, pronta para fazer ainda reclamam, pois “não sabem o que era o trabalho que tinha para comer arroz que tinha que ser batido e peneirado para separar o grão da palha.” Destaca ela com muito bom humor.
Caminhando pela antiga Agreste
Melancias não tem mais que 25 pessoas morando na comunidade. Elas estão em um novo lugar, distante cerca de três quilômetros da igreja de Nossa Senhora das Dores do Agreste. Vivem da terra e da criação.
A cerca de trezentos metros da igreja está o cemitério onde estão enterradas as pessoas do lugar e outras que morreram longe dali, mas que decidiram ser sepultadas no lugar onde nasceram. Na última cheia um sepultamento virou uma operação de guerra. Vários carros e balsas se juntaram para passar o caixão por vários alagamentos até que enfim chegasse a Agreste para ser sepultado.
Logo perto da igreja, a uns oitenta metros, logo à esquerda, estão as ruínas da Casa Paroquial. Lá encontramos algo inusitado. Alguém, por um gesto de carinho ou de respeito, colocou a cadeira destinada ao padre pendurada no armador de madeira e de lá nunca mais saiu.
Quando cheguei à Agreste nos deparamos com a natureza da caatinga com gaviões, galos-campina, rolinhas e jandaias no ninho criando seus filhotes.
Depois que passei da última casa da Agreste velha fiz a volta em uma barragem muito antiga, chamado de açude Maracajá, feita ainda de tijolos de barro cozido, algo medieval e que dura até hoje. Esta barragem de mais de dez metros de altura e outros cinco de largura, desde que acumulou água pela primeira vez, só esteve totalmente seca por duas vezes. Uma delas agora em 2016.
O sino roubado
Mas Agreste não iria sofrer apenas com perda de seus vizinhos. Quase perderam o sino também. Conta dona Vanda que certo dia um carro encosta ao lado da igreja e roubam o sino e a madeira de lei que cobria a mesa do altar. Dias depois o sino estava sendo vendido na feira de Iguatu, quando um devoto de Nossa Senhora das Dores reconheceu a peça e a pegou de volta. Do tampo do altar nunca mais se teve notícia, pois perdeu-se para sempre.
Francisco e a dor da alma chamada depressão
Tempos antes Francisco, morador das melancias e afilhado de Nossa Senhora das Dores, teve uma profunda depressão que o deixou prostrado numa rede por longos quatro anos. A depressão é uma doença que assola a humanidade e com grande incidência no pós-modernidade. É a dor da alma onde a pessoa se fecha em si mesma, esquece do mundo e perde a vontade de caminhar pela vida. Fica tudo cinza.
Há uma tradição no sertão onde toda criança possui três padrinhos. O padrinho, a madrinha e um terceiro; sendo este um santo ou uma santa. Nossa Senhora das Dores do Agreste era a santa madrinha de Francisco.
Um dia, como outro qualquer, onde a rotina comanda o tempo, aconteceu algo inesperado. A maioria das pessoas do lugar já não acreditava que Francisco viesse um dia a levantar-se daquela rede e voltar a ter uma vida normal. Mas Francisco levantou, tomou o rumo da igreja e lá entrou.
Horas depois retorna e teve o seguinte diálogo com sua mãe.
-“Mãe…” Disse Francisco. “Eu fui ter uma conversa com minha madrinha lá na igreja. E de hoje em diante eu não mais ficarei na rede e nem vou mais tomar remédios. Minha madrinha me curou.”
Mesmo espantada com a afirmação, a mãe de Francisco não levou muito à sério devido ao histórico de depressão, mas ainda assim ficou surpresa e esperançosa. Deixou ela que e a fé respondesse no tempo de Deus, dos anjos e santos, como se costuma dizer no sertão.
Os dias foram se passando e Francisco nunca mais voltou à rede a não ser para dormir o sono dos justos; não tomou mais remédios, não sofreu mais da dor da alma e faz mais de ano que aquele homem, considerado um morto-vivo, é um dos mais dispostos e produtivos camponeses do lugar. Quem conhece a história de Francisco diz que “esse aí não tem nenhum sinal de que teve depressão. Se contar ninguém acredita.” Afirmação mais comum sobre o caso dele.
O próprio Francisco confirma a história e credita a sua madrinha, Nossa Senhora das Dores, sua volta a vida.
Como diria o pároco na missa: “Por testemunhos de fé, damos Graças a Deus.” Quem sou eu, um mero missivista, para duvidar das coisas da fé?
A guardiã de Agreste
O patrimônio da fé possui uma guardiã. Chama-se dona Valnice que também é animadora da comunidade. A igreja pertence à Paróquia Bom Jesus Piedoso de Quixelô que é subordinada à Diocese de Iguatu.
Valnice abriu a igreja para que pudesse ver por dentro e de perto a imagem de Nossa Senhora das Dores que aos 89 anos já passou por pelo menos uma restauração. Entrar na igreja me trouxe uma energia boa. Pude buscar o sentimento que Pedro Castro Lima teve ao ver aquilo tudo pronto depois de tanto sacrifício pessoal. Não resisti a doce tentação de tocar naquela imagem que veio em lombo de jumento em três dias de viagem, nas doze léguas percorridas e que viu a vida chegar e depois ir embora, ficando apenas alguns poucos devotos e uma animadora a proteger toda essa história.
Tudo vivo, mas sem pessoas
Era hora de voltar, pois já estava no avançado da hora. No retorno passamos pelas mais de cinco grandes casas abandonadas, algumas de portas e janelas abertas, como se ainda morassem pessoas lá. Em outras vacas pastavam ao lado da casa. Parecia tudo vivo, só não haviam pessoas. No caminho passamos por jumentos e ao lado, no alto, as jandaias estavam lá cuidando dos seus filhotes. Tudo vivo. Muito vivo, mas sem pessoas.
Agreste hoje ganha vida em duas datas importantes mantidas pela Diocese de Iguatu. É o dia de Nossa Senhora das Dores comemorado em 15 de Setembro e o Dia de Finados em 2 de Novembro. Nas duas datas missas são realizadas, mas sem tanta pompa e circunstância como de outros tempos atrás.
Mas a luta de Pedro Castro Lima não se encerra com os desvios de rumo do progresso e nem com a migração das pessoas de Agreste. Ela continua na fé de Nossa Senhora das Dores na luta pela liberdade da alma em busca da mais perfeita vida: a Eterna.
Agreste é mágica.
Reportagem – Por Luís Sucupira
Fotos – Ana Paula Cavalcante e Luís Sucupira
Belíssima matéria . É uma história rica e que daria um seriado de tv com certeza .
Com certeza é uma matéria incrível, eu vivi nesse lugar, fui criada pela minha madrinha Vanda. Ai que saudades! Preciso voltar para reencontra-la, já são mais de 30 anos sem nos vermos.
Veja essa matéria da TV diário
https://www.youtube.com/watch?v=0VHDl4PNf_I
Gente eu amei a matéria, estou super emocionada, pois vivi no Agreste com minha madrinha a Dona Vanda,ela praticamente me criou meu Deus que saudades, vim para São Paulo a mais de 30 anos e ainda não voltei no Ceará, mas preciso voltar pois tenho muita saudade de minha madrinha e de todos . Parabéns pela matéria.