DESERTO QUARESMAL

O deserto é desafiador pela aridez, escassez, rudeza. Sua ressonância, no entanto, é repleta de significados capazes de tornar leve o peso da vida comprometida. Entende-se por que Jesus inicia sua existência messiânica no deserto. Não em torno ao lago. A propósito, o prefácio do primeiro domingo da quaresma dá conteúdo à riqueza simbólica da escolha: “Jejuando quarenta dias no deserto, Jesus consagrou a observância quaresmal. Desarmando as ciladas do antigo inimigo, ensinou-nos a vencer o fermento da maldade”. Trata-se de simbolismo litúrgico.

Certamente, há um sentido ambivalente. O deserto pode ser o lugar de oração e do encontro com Deus. Assim sendo, a solidão do deserto é bem acompanhada. Pode ser o lugar da tentação, da sedução, da provação, da aridez espiritual. Neste sentido, a solidão do deserto pode evocar más companhias e conselheiras fantasiosas, sombrias, enganadoras. Se vencidas, o deserto é um oásis no qual é possível reencontrar a paz paradisíaca. Certamente, esta é a leitura de Marcos: Jesus “no deserto foi tentado por Satanás. Vivia com as feras, e os anjos o serviam” (1,13).

Quanto a Lucas, introduz a temática com o sentido positivo. “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (4,1). É legítimo pensar que o combate e a vitória, incluindo o uso correto das Escrituras, visibilizam a ação iluminadora do Espírito em Jesus. Trata-se de mistério de luz, não de sombras. Tudo indica que o evangelista entende o deserto no sentido de lugar preparatório para a missão que o Messias travaria contra todas as forças hostis. Jejum e oração com a Palavra de Deus apontam o caminho espiritual de ataque e defesa, especialmente quando se trata do nosso combate na fé.

Lucas parece dizer que toda a vida terrestre de Jesus foi uma luta. Só assim entenderíamos as duas afirmações: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (v. 13); “ Vós sois os que permanecestes constantemente comigo em minhas tentações…” (22, 28).

As tentações no deserto têm valor tipológico para todas as investidas do mal que nunca deram trégua a Jesus. Com efeito, todas as provas que Jesus superaria durante a vida pública, perante o falseamento de suas palavras e atitudes, da investida sistemática dos inimigos, diante dos inquéritos condenatórios, da crueldade da Paixão e, sobretudo, da cruz, bem perto do desfecho.

Por acaso, as zombarias dos chefes não eram provas e tentações? “A outros salvou, que salve a si mesmo, se é o Cristo de Deus, o Eleito! ” (23, 35). Não era também a caçoada dos soldados que diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo”? (v. 37). O combate final, de fato, durou da agonia à conclusão na qual prorrompeu o grande grito da vitória: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (v. 46). Morreu como viveu na entrega ao Sumo Bem.

Quais as seduções e tentações pelas quais precisamos passar e se inserem no pedido que Jesus faz ao Pai conosco: “não nos deixes cair…”? (11, 4). A sedução de fazer da vida um absoluto, viver do ter, do prazer e do poder? A vida fechada e vazia, sem transcendência para Deus e para o outro no amor e na justiça? A vida descomprometida e irresponsável? A desconfiança na fé?

Certamente, as três tentações messiânicas de Jesus apontam as seduções mais perigosas simbolizadas no pão, no poder e na magia. Esta parece ser a mais emblemática. É servir-se da religião e da Palavra para fins inconfessáveis como se Deus pudesse ser manipulável.

A Quaresma pode ser um grande e frutuoso retiro espiritual. Ela nos desafia a retomar o combate contra o “poder das Trevas” (22,53).

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