E DEUS FOI FIEL À SUA PROMESSA!

Há oito dias, precisamente na Conclusão do Ano Litúrgico, no Dia do Senhor, na Solenidade de Cristo Rei do Universo, Senhor do Tempo e da História, fomos surpreendidos pela notícia do falecimento de nosso Bispo Emérito Dom José Doth. Sim, foi uma grande surpresa, embora soubéssemos da situação de fragilidade em que se encontrava nos últimos anos.

Alguns sentimentos invadiram o coração daqueles que o conheceram: gratidão a Deus porque em Sua Infinita Bondade aliviou o sofrimento do seu servo; tristeza, pois afinal quem permanece indiferente diante do mistério da morte, que traz consigo a mais radical separação?; alegria por crermos que a morte é apenas uma porta que permite à criatura humana realizar  a “passagem” definitiva do tempo à eternidade.

Esses três sentimentos não estão presentes apenas em nosso coração, mas eles se movem do coração à nossa memória. E quando atingem à nossa memória, então visualizamos Dom José Doth quase como se estivesse diante de um espelho. Que espelho!

Utilizando a imagem do espelho, vou tentar compartilhar contigo, caro leitor, algumas das minhas experiências vividas com o nosso Bispo Emérito. Certamente não direi tudo o que deveria, uma vez que a nossa convivência não ultrapassou o período de duas décadas, mas direi muito do que vivi junto a ele, mesmo quando eu me encontrava geograficamente distante dele.

O que nos mostra esse espelho?

1) um homem; um ser humano no sentido pleno da palavra, com todas as características de uma pessoa normal, com qualidades e defeitos, como qualquer um de nós; um ser humano que tinha profunda consciência de sua história pessoal;

2) um homem que, no silêncio, ouviu a voz de Deus que o chamava; ele ouviu e acolheu o chamado; ele foi fiel, generoso e perserverante ao responder à voz de Deus, tornando-se Sacerdote;

3) ele foi recompensado pela fidelidade e generosidade: ele se tornou Sucessor dos Apóstolos; em tal condição, dom José Doth recebeu, viveu, transmitiu e testemunhou diante dos homens a novidade do Reino de Deus. Essas características nortearam todo o arco da vida de Dom José Doth. Seus atos, palavras e suas escolhas eram permeadas por essas tantas outras atitudes.

O humano em Dom José Doth: das inúmeras experiências vividas, lembro-me de uma circunstânica que permaneceu impressa em minha memória; era o período de visita pastoral; naquela visita em que ele se encontrou com o povo da  comunidade uma criança chorou; naturalmente as pessoas que ali estavam se dispersaram um pouco e também ele se desconcentrou, o que fez com que ele se manifestasse. E a reaçao foi: “De quem é o menino que chora? Traga-me aqui, por favor! Vejam a beleza desse pingo de ouro!”. E, com a mão, abençoou a criança, que por sua vez não mais chorou.

O Silêncio em Dom José Doth. Existia em nosso Bispo um contínuo terreno propício para viver em sintonia com Deus, em Oração. A Celebração Eucarística, a Adoração ao Santissimo, a Liturgia das Horas e a recitação do Rosário preenchiam o seu ser e também o seu dia. Da sua intimidade com Deus ele hauria as forças necessárias para conduzir com perserverança a Cruz do Senhor.

Dom José Doth, homem Fiel e Generoso. O Silêncio, a Oração e a intimidade transformaram o ser daquele homem. Sua alma foi dilatada pela força do amor; e, uma vez atingido pela força desse amor, dom José Doth se doou, entregou-se sem reservas às exigências do Reino. Ele não viveu para si. Ele permitiu que por meio dele se cumprisse a profecia de Jeremias: “Dar-vos-ei Pastores segundo o meu coração” (3,15).

Verdadeiramente dom José Doth tornou-se um “pescador de homens”. O seu zelo fez de si um pastor fecundo. A seu respeito fala-se muito daquilo que se vê como estrutura física, isto é, a Catedral dedicada a São José, Padroeiro de nossa Diocese. De fato, a construção da Catedral parece ter contribuído para acelerar a perda de sua saúde. No entanto, a Catedral compreende apenas uma pequena parte de tudo o que Dom José Doth fez pela nossa Diocese. Muito do que ele fez ficou invisível por muito tempo, vindo às claras apenas nesses últimos dias. E muito do que foi feito por ele ficou desconhecido precisamente por ele ter sido um amante do silêncio e da discrição.

O que foi feito por dom José Doth que permaneceu quase que invisível por muito tempo? Descrevo aqui apenas alguns feitos dentre os muitos:

  • Dom José Doth transmitiu ao povo de Deus a Fé Católica. Alguém poderia pensar que isso não era nada de extraordinário e que fazendo isso não cumpria nada além daquilo que era o seu dever de bispo. Mas podemos afirmar que isso é algo extraordinário sim, uma vez que nas últimas décadas existiu e existe ainda uma tendência de deformação no processo de transmissão da Fé Católica, em razão de alguns exageros ou excessos provenientes de algumas ideologias. O nosso Bispo sempre resistiu e combateu firmemente os elementos heterodoxos que pudessem debilitar a fé do nosso povo. Essa sua ortodoxia e sua fidelidade à Igreja, ao Evangelho do Reino, a Jesus Cristo e ao Povo de Deus lhe custou um alto preço. Mas, como a Virgem Maria – de quem era muito devoto -, ele “guardava todas essas coisas em seu coração”. (Lucas 2, 51b).
  • Para dar continuidade a esse processo de Evangelização, dom José Doth se dispôs a gastar suas energias, investindo na formação dos novos sacerdotes. Ele tinha consciência das novas exigências pastorais e dos novos tempos que traziam consigo novos problemas, pois repetia quase como que um refrão: “a melhor forma de cuidar do nosso povo é oferecer-lhe bons sacerdotes”. Tendo sido então herdeiro do Concílio Vaticano II, certamente ele conhecia muito bem os critérios apresentados pela Optatam Totius (Decreto sobre a Formação Sacerdotal) e pela Presbyterorum Ordinis (Decreto sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes). Com o desejo de formar sacerdotes que pudessem corresponder aos ideais do Concílio Vaticano II, o nosso Bispo tentou de diversas maneiras encontrar uma forma adequada para oferecer à diocese presbíteros à altura das exigências de então. Eis aqui a razão pela qual os seminaristas diocesanos num determinado período foram transferidos para uma casa da diocese, adquirida por ele mesmo em Fortaleza, ou ainda razão pela qual alguns foram transferidos para o seminário diocesano de Quixadá e, posteriormente, para o seminário Maria Mater Ecclesiae em São Paulo e enfim para o seminário da Diocese de Crato. Ele não ofereceu à diocese os melhores e mais santos presbíteros, mas deu o máximo de si para oferecer o melhor à Igreja. A realização desse seu desejo também lhe custou um alto preço, mas “ele guardava todas essas coisas em seu coração” (Lucas, 2, 51b).
  • Dois últimos aspectos que considero importantes, mas que permaneceram apenas no âmbito de tentativas, foram o desejo de ver a “Unidade no Clero” e resolver alguns problemas relativos aos “assuntos econômicos”. A nós seminaristas, com quem ele se encontrava quase todos os dias quando morávamos no Seminário Menor de Iguatu, a palavra “Unidade” a ouvíamos quase como se fosse um segundo refrão. Hoje entendo e interpreto o seu desejo dessa forma: a “Unidade” era desejada porque os fatos vividos o faziam sofrer. Noutras palavras repito a mesma idéia: ao ver a divisão, o seu sofrimento o impelia a desejar ardentemente o dom da “Unidade”. Como nosso Bispo desejou e tentou ver o clero em sintonia de “um só coração e uma só alma!”. Infelizmente esse desejo ele não o realizou. O seu segundo desejo era de não depender das doações que vinham do Exterior, ou seja, ele desejava colocar a Diocese num ritmo de autonomia financeira. Mas para tanto teria sido necessário assumir em comunhão com o clero algumas responsabilidades que foram inviáveis naquele momento. E essa inviabilidade era efeito de causas diversas, dentre as quais a necessidade de mudança de mentalidade da parte de alguns que eram acostumados a um estilo determinado de administrar os bens eclesiais. Quando ele acenava o tema, então algumas ‘vozes proféticas’ se levantavam duramente contra ele. Nosso Bispo tinha competência e autoridade moral, mas o fato de ter sido presbítero do clero em que naquele momento era Bispo então isso constituiu uma grande dificuldade e se tornou razão suficiente para que alguns obstáculos pudessem ter sido superados. Mesmo que ele dissesse: “Sou seu Bispo” ou “Não esqueça de que o senhor me deve obediência”, mesmo assim não era possível encontrar uma saída para certos problemas. Desse modo, enquanto a “Unidade” não foi realizada, o aspecto administrativo se realizou em parte, ou seja, depois de sua renúncia, o Bispo que o sucedeu encontrou o terreno favorável para abordar o tema e introduzir a questão. Mesmo assim, no que diz respeito aos aspectos da Unidade e da Administração “ele guardava todas essas coisas em seu coração” (Lucas, 2, 51b).

Todos esses aspectos, somados a alguns outros, constituíram a Cruz de Dom José Doth. Disso ele era consciente, pois sabia que o sofrimento, a perseguição e a tribulação eram inerentes à vocação de todo discípulo de Jesus, de tal forma que com ele não poderia ser diversamente. E seria estranho se tivesse sido.

Todavia penso que as dificuldades e os obstáculos inerentes ao seu ministério não o atormentaram tanto quanto a falsidade, as fofocas e a traição por parte de alguns que eram próximos a ele. Era perceptível a sua capacidade de encontrar o discernimento para identificar a verdade em meio a uma situação de mentira ou de fofoca. E por ter identificado em muitos casos a mentira e o mentiroso, a fofoca e o fofoqueiro, o falso e a falsidade, então viveu os ultimos momentos de sua vida na solidão, apenas com a presença daquela que o acompanhou durante longos anos do seu ministério, irmã Antonia.

O povo o amava. Sinal visível desse amor e da confiança que o povo depositou nele é a própria Catedral de São José. Uma edificação daquele porte não se faz com poucos reais. Foi a confiança que ele depositava na Providência Divina, por meio do Patrocínio de São José, que fez o grande milagre acontecer; mas foi igualmente a confiança que as pessoas depositaram nele que fez com que esse grande projeto fosse levado a cabo. Afinal, se ele não tivesse sido honesto, como poderia ter chegado ao fim? O povo confiava nele. Se existiu essa confiança da parte dos fiéis, então quem teria disseminado desconfiança, maledicência, acusações e pesadas críticas em relação a ele? Quem seriam aqueles “muitos que deveriam pedir perdão a Deus e a ele” – conforme as palavras do Bispo Ordinário Dom Edson, ao desabafar junto à sepultura? (Jornal Diário do Nordeste, 29 novembro de 2017).

Estamos há oito dias de sua morte. O que nos resta? O que podemos e devemos fazer? Antes de tudo devemos pedir perdão pelos nossos atos de injustiça que fizeram o nosso bispo padecer no silêncio. Mesmo depois de ter renunciado ao ministério pastoral da diocese ele foi foi exposto a uma situaçao de constrangiemnto e humilhação, tornando-se ainda vítima de injustiça e de ingratidão por parte de gente falsa que soube tirar proveito dele nos momentos em que ainda ele era o Bispo Ordinário. Portanto, è nosso dever pedir perdão.

Em segundo lugar devemos ter a coragem de manifestar o nosso reconhecimento e a nossa gratidão por tudo o que pudemos aprender de Dom José Doth. Pois olhar o espelho é contemplar o reflexo de um homem bondoso, generoso, honesto, humilde, fiel, perserverante, zeloso, místico, comprometido, obediente, coerente, discreto, sensato e prudente. Por tudo isso e muito mais, ele faleceu providencialmente na Solenidade de Cristo Rei do Universo. Tendo falecido precisamente nessa circuntância, estamos certos de que Dom José Doth, por todo o bem que fez, mereceu ser recebido na Glória por Cristo Rei com essas Palavras: “Vinde, benditos do meu Pai, recebei em herança o Reino preparado para vós desde a criação do mundo…” (Mateus 25, 34).

 

03 de Dezembro de 2017

 

 

Pe. Cicero Lemos

Diocese de Iguatu

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