É do conhecimento geral que a Igreja no Brasil dedica o mês de setembro à Bíblia. Neste ano de 2020, o livro das Sagradas Escrituras, proposto ao estudo e à reflexão, chama-se Deuteronômio e significa Segunda Lei. Ainda que o título não se ajuste à obra, diz muito sobre a Lei, o Direito e a Justiça, centro dinâmico e vital que distingue e une um povo: “Ouve, Israel, as leis e os costumes que eu mesmo vou ensinar-vos a pôr em prática: assim vivereis e entrareis para tomar posse da terra que vos dá o Senhor, o Deus de vossos pais (4,1).
Trata-se do Livro da Lei cujo cuidado é o de regular a tradição legal à uma nova situação social. Aos juízes é dito o óbvio necessário, isto é, que sejam justos: “Não defraudarás o direito, não alimentarás parcialidade, não aceitarás presentes, pois, o presente cega os olhos dos sábios e compromete a causa dos justos. Procurarás a justiça, nada além da justiça, a fim de viver e tomar posse da terra…” (16,19-20). Grande deformação é quando o juiz não faz justiça ao pobre.
O programa social do Deuteronômio ilumina a opção preferencial pelos pobres feita pela Igreja Católica, opção não sempre compreendida, aceita e vivida. Observamos que a mensagem do Livro da Lei visa, precisamente, a estarmos do lado dos mais vulneráveis. Na época, viúvas, estrangeiros, órfãos. Hoje, todos os empobrecidos, explorados, marginalizados, necessitados.
A frase escolhida para o mês da Bíblia é sugestiva: “Abre tua mão para teu irmão “ (15,11). Ela está inserida em texto mais amplo: “Porque não cessará de haver pobres no meio da terra, eu te dou este mandamento: abrirás tua mão largamente para teu irmão, para teu indigente e para teu pobre na tua terra” (15,11). A pobreza insuperável não justifica a inércia de não fazer nada nem o ceticismo quanto à eficácia das ações de promoção social. Ao contrário, animará a decisão de políticas compensatórias e as opções pessoais de agir para erradicar a pobreza extrema.
Jesus, em outro contexto, usou frase semelhante: “pobres sempre tereis entre vós” (Jo 12, 8), jamais para expressar fatalismo ou resignação. Ao contrário, expressara por palavras e atos o amor que gera conflito, em sentido profético. Recupera “as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23,23). Indica o juízo definitivo de Deus a valorar as obras de misericórdia (Mt 25,31-46).
A mão aberta ou estendida, no Livro da Lei, está inserida no contexto social e libertador da remissão das dívidas de sete em sete anos (15,1-10). A remissão deveria ser acompanhada com a atitude interior do coração: “Tu lhe darás generosamente, em vez de lhe dar a contragosto…” (15,10). O propósito é estabelecer um excelente nível moral para o povo de Israel devido a sua vocação de povo da Aliança e da Promessa. O mesmo se diga da Igreja, chamada a ser a Igreja dos pobres ou aberta à problemática da pobreza, sem a qual não viveria a ética do amor incondicional, gratuito e samaritano de Jesus: “como Eu vos amei” (Jo 15,12).
Para o discípulo de Jesus, a caridade de Cristo é a medida sempre alta de qualquer promoção social para que os empobrecidos possam superar a miséria e a falta de oportunidades de educação, trabalho e moradia. Aliás, os santos e santas de Deus tiveram a percepção do salmista: “Distribuiu, deu aos pobres, a sua justiça permanece para sempre” (Sl 112, 9). Eis o convite que a Palavra nos faz e o desafio que ela nos põe: do simbolismo à realidade da mão aberta.