Celebrando o aniversário de nascimento de Paulo Freire em setembro passado (19/09/1921), queremos retomar sua noção de “inédito viável”. Trata-se de uma intuição pouco aprofundada, mas fundamental para a tarefa do “esperançar” ou para a conquista cotidiana da cidadania. Aparece já em sua obra clássica Pedagogia do oprimido. É retomada em sua Pedagogia da esperança e em outros escritos. E está sempre ligada ao desafio e à tarefa de transformação da realidade que caracteriza o ser humano como ser da práxis.
Diferentemente dos demais animais, o ser humano constrói sua própria vida. Em sentido estrito, só o ser humano, como ser da práxis (ação-reflexão), cria e transforma: “E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas ideias, suas concepções”.
Um aspecto fundamental nesse processo de transformação da realidade e de conquista da própria vida é a esperança e o sonho que mobilizam e orientam a ação humana: Enquanto “a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir ao fatalismo em que já não é possível juntar as forças indispensáveis para o embate recriador do mundo”; a esperança nos mobiliza, despertando sonhos, juntando forças e encorajando para a luta. Mas se trata sempre de uma esperança ancorada da práxis ou que se torna realidade mediante a práxis. Como insiste Paulo Freire: “Minha esperança é necessária, mas não é suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia”; “não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã”; “sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a esperança se desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero”.
E é aqui, no contexto da efetivação da esperança ou, mais precisamente, na tarefa de enfrentamento e superação de “situações limites” através de “atos limites”, que a noção de “inédito viável” aparece e se mostra fundamental. As “situações limites” podem ser encaradas “como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa senão adaptar-se”. Mas podem ser também encaradas como construções históricas que se podem superar ou transcender, descobrindo ou divisando, “mais além delas e em relação com elas, o ‘inédito viável’”. Trata-se da “possibilidade de perceber mais além das ‘situações limites’ o ‘inédito viável’” e transformá-lo em realidade pela ação transformadora ou pela práxis.
De fato, “nas situações limites, mais além das quais se acha o ‘inédito viável’, às vezes perceptível, às vezes não, se encontram razões para ambas as posições: a esperançosa e a desesperançosa”. Elas podem ser vistas e encaradas como intransponíveis (fatalismo) ou como superáveis (libertação ou transformação). E uma das tarefas mais importantes e difíceis do educador ou da educadora popular é ajudar a “desvelar as possibilidades, não importam os obstáculos, para a esperança”.
Isso implica vislumbrar algo “inédito” para além das “situações limites” (sonho/utopia). Mas implica também vislumbrar um inédito que seja “viável” (realismo). Nem pessimismo trágico (não há possibilidade de mudança) nem otimismo ingênuo (mudar o mundo com boa vontade e a toque de mágica), mas realismo crítico-criativo (reais possibilidades disponíveis, criação de novas possibilidades, caráter processual), o que exige ousadia (inédito), lucidez e estratégia (possível).
No processo de conquista da cidadania nem tudo é possível a qualquer momento. Mas algo sempre é possível. E isso que é possível num determinado momento pode abrir novas possibilidades de conquista. O grande desafio aqui é nem ir na base do “tudo ou nada” nem se contentar com “bolsas” ou migalhas. Uma pequena conquista deve alimentar a esperança e animar a luta por novas conquistas. É a luta nossa de cada dia. É a conquista cotidiana e permanente da cidadania.